O contexto legislativo brasileiro
O Brasil foi pródigo no tratamento das questões de família no âmbito da Constituição de 1988. Reconhecimento de novas formas de família ao lado do casamento, igualdade entre os filhos, o direito da criança e do adolescente foram consagrados pelo Constituinte. E em relação ao projeto de filiação, o §7º do artigo 226 da Constituição prescreve que, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
A norma programática acima destacada não deixou de delinear uma eficácia constitucional de seu âmbito: é vedação ao Estado interferir no planejamento familiar projetado pelos participes da Família, bem como criar políticas públicas de incentivo ou restrição ao número de filhos. Cabe ao Estado, quando muito, orientar e disponibilizar métodos e infraestrutura no seu sistema para atender eventuais interessados no projeto de filiação.
A Lei Federal brasileira nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, veio com o propósito de especificar como poderia ser esta atuação do Estado no planejamento familiar. Todavia, o legislador federal circunscreveu a explicitação do comando constitucional na explicação do que viria ser o tal do “planejamento familiar”, colocando o Sistema Único de Saúde à disposição do interessado (homem ou mulher) que pretendesse limitar ou aumentar “a prole”, estabelecendo, em parte final, crimes que envolveriam a esterilização sem o consentimento.
O fato é que tal legislação não trouxe o esperado, especificamente sobre o direito do cidadão em relação ao uso da ciência em prol do projeto de filiação. É possível se usar a ciência, a medicina, como forma de favorecimento ao projeto de filiação? Valer-se de doação de material genético de pessoas diversas, valer-se de diagnóstico prévio a implantação de embriões, valer-se de útero de outra mulher, com o amparo da ciência, rompendo-se com o dogma do brocardo mater semper certa est?
O Código Civil brasileiro de 2002, de maneira muito tímida, trouxe genericamente a hipótese. Em seu artigo 1.597, inciso V, prescreveu ser possível filhos derivados de “inseminação heteróloga”, com autorização do marido, bem como “inseminação homologa”, abrindo um flanco importante para a admissibilidade de filiação derivada de reprodução assistida.
O reconhecimento de novas formas de família e o aumento do interesse no tema
Apesar da autorização Código, isso não significou um aumento exponencial da busca de reprodução assistida pelos interessados no Brasil. Tal fenômeno só se alterou em 2011, quando o Supremo Tribunal Federal, em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, passou a admitir como entidade familiar uniões estáveis e casamentos formados por pessoas do mesmo sexo, quebrando paradigmas.
Se tal julgamento representou uma pá-de-cal na discussão envolvendo a possibilidade de adoção de crianças por casais homossexuais — o que era lamentavelmente questionado até 2010 — o projeto de filiação ganha novos contornos envolvendo a possibilidade do uso da ciência para também permitir a este modelo de filiação um projeto de reprodução próximo a filiação natural, com o uso, inclusive, de material genético homogêneo aos interessados neste sonho de ter um filho.
Apesar do fato histórico judicial — que motivou, intuitivamente, o interesse exponencial no uso da reprodução assistida para fins de procriação — o Brasil não cuidou de aprovar uma lei a respeito do tema.
O Conselho Federal de Medicina, desde 2012, não tem se omitido em relação ao tema e trouxe importante regulamentação ética para atuação de seus profissionais, especialmente em razão da alta demanda sobre a reprodução assistida.
Tivemos a Resolução 2013/2013, depois tivemos a Resolução nº 2121/2015, Resolução 2168/2017, Resolução nº 2294/2021 e agora, no ultimo dia 20 de setembro de 2022, foi publicado a Resolução 2320/2022, trazendo ao público normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida — sempre em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância aos princípios éticos e bioéticos que ajudam a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos, tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros.
A ausência de lei federal e a realidade prática: caso de non liquet?
Apesar das críticas doutrinárias, não podemos fechar os olhos para realidade prática. Como visto acima, diante do aumento exponencial do interesse na reprodução assistida, como aplicar a questão no âmbito do direito brasileiro?
Temos, como visto, Código Civil (1597, V) e Resoluções Administrativas do CFM sobre o tema que, no caso destas últimas, fixam limites éticos e jurídicos a inúmeras praticas correlatas à reprodução assistida, desde a criopreservação de embriões até a gestação em substituição, mediante controle rigoroso sobre quem deve servir de substituta na gestação, garantindo-se a gratuidade, se evitaria conflitos com a Constituição Brasileira.
E a implementação desta reprodução não tem sido ignorada pelo Poder Judiciário. O CNJ, através de sua Corregedoria, emitiu provimentos (52/16 e 63/17) para regulamentar alguns temas relativos a reprodução assistida no Brasil o registo de filhos havidos de gestação em substituição, atuando para garantir a implementação do registro de crianças nascidas de técnicas de reprodução assistida, evitando-se instabilidade jurídica no núcleo familiar que está por se formar naquele momento.
A ausência de lei a respeito não legitimou o non liquet. Por exemplo, os Tribunais tem reconhecido a ampla aplicabilidade das Resoluções hoje existentes, como é o caso da análise das chamadas “inseminações clandestinas”.
Nesta hipótese de clandestinidade, não temos clínicas, termos de consentimento e controle da doação do material genético, permitindo-se a aplicação da legislação geral a respeito da filiação. Nestes casos, correta a aplicação das presunções previstas no Código Civil, admitindo-se, ainda, a investigação de paternidade e registros da criança em nome da parturiente, valendo-se da máxima de que, em regra, a mãe é a genitora.
A situação de excepcionalidade deverá ser rigorosamente comprovada em processos judiciais, levando-se sempre em consideração o princípio do melhor interesse da criança. Esta é a situação corrida em caso julgado pelo TJ-SP, que autorizou a inclusão dos nomes de duas mães no registro de uma criança concebida mediante inseminação artificial caseira. A turma julgadora negou recurso do Ministério Público contra o reconhecimento da maternidade homoafetiva. Para o MP, também seria necessária a inclusão do nome do pai biológico, que doou o sêmen, “como forma de se observar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e paternidade responsável”.
Ao manter a decisão de primeira instância, a relatora, desembargadora Marcia Dalla Déa Barone, citou uma escritura pública, anexada aos autos, em que o doador do sêmen declarou o feito, bem como afirmou a ausência de qualquer envolvimento emocional com as autoras e com a criança [1].
Um outro assunto que envolveu até mesmo uma nova redação da Resolução 2320/2022 foi a questão da criopreservação dos embriões. A 4ª turma do STJ fixou a impossibilidade de implantação de embriões após morte de um dos cônjuges sem manifestação inequívoca, expressa e formal [2].
Para que fosse aplicada a diretriz do Superior Tribunal de Justiça, mesmo sem lei, a recente Resolução nº 2320/2022 do CFM prescreveu que no momento da criopreservação, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los. Atualmente, segundo nova redação de 2022, não é necessária ordem judicial, valendo a manifestação de vontade para efeitos em relação aos direitos dos titulares do material genético.
A questão do registro das crianças de inseminação heteróloga no âmbito da doação temporária do útero, como visto acima, também ganhou o reconhecimento da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no Provimento 63, de 2017.
No Brasil, com o agravamento de não termos uma lei específica sobre a gestação em substituição — e, mais amplamente, de procriação medicamente assistida —, a Lei de Registros Públicos brasileira (Lei nº 6015/1973) associa o conceito de maternidade à parturiente que, como vimos, especialmente nesta matéria, não será a mesma pessoa.
Em 20 de novembro de 2017, como forma de se favorecer os beneficiários interessados na gestação em substituição, a Corregedoria Nacional de Justiça — órgão competente no Brasil para fiscalizar os registros civis no país — emitiu o Provimento nº 63, tornando mais simples o registro de crianças geradas pela gestação por substituição.
Nesse caso, foi regulamentada a emissão de certidão de nascimento dos filhos cujos pais optaram por essa modalidade de reprodução, garantindo-lhes um direito básico. Se os pais (heteroafetivos ou homoafetivos) forem casados ou convierem em união de facto, apenas um deles poderá comparecer ao cartório para fazer o registro. Na certidão, o documento deverá ser adequado para que os nomes dos beneficiários figurem como ascendentes, e, dada a possibilidade de envolvimento de pessoas do mesmo sexo, o documento será emitido sem distinção quanto à ascendência paterna ou materna.
Um outro tema envolvendo reprodução assistida e as consequências de uma lei específica para fins penais envolve o descumprimento da gestação de substituição por uma das partes envolvidas neste negócio jurídico existencial.
Apesar da lei brasileira limitar subjetivamente quem pode figurar como gestante de substituição, apesar agora da ampliação permitida pela Resolução nº 2320/2022, um tema que tem despertado a atenção e a recusa da entrega da criança nascida e o descumprimento do termo de consentimento. Há consequências jurídicas penais possíveis de se imaginar neste caso?
O assunto não é de fácil solução, agravado pela ausência de lei específica, por óbvio. Mas se considerarmos que o que consta do termo de consentimento fixa as titularidades neste projeto de filiação e, especificadamente neste caso, a parturiente (que não é mãe e, segundo o termo de consentimento, tem o dever de registrar a criança em nome dos contratantes) estará subtraindo uma criança que “não é sua filha” ou registrando em nome próprio “filho que não é seu”, poderíamos imaginar algumas implicações penais ao fato, perfeitamente aplicáveis ao caso concreto (CP, artigos 249, 243). Também não ignoramos o abandono da gestação de substituição pelos próprios contratantes.
Neste caso, considerando que a regra aplicável para fins de efetivação da filiação está no termo de consentimento (que deve, inclusive, ser assinado pelo cônjuge ou companheiro da parturiente e gestante de substituição), entendemos que, ao abandonar a criança nascida que é sua filha, os contratantes também cometem crime (CP, artigo 133), sendo legitimado, inclusive, que a gestante registre diretamente a criança em nome dos contraentes, cumprindo-se o Provimento nº 63/2017 do CNJ. Isto não significa que a criança ficará, automaticamente, com a parturiente, porque a parturiente, neste processo, não é a mãe. Neste caso, deverá a criança ser colocada em situação de adoção, atendo-a segundo os seus melhores interesses.
Obviamente que a lei federal é bem-vinda. Mas o direito é arte alográfica, pois a norma encontra-se em estado de potência, involucrada no enunciado (texto ou disposição), cabendo ao intérprete desnudá-la. E como vimos acima, a ausência de uma lei específica sobre a Reprodução Assistida não quer significar que não tenhamos um arcabouço jurídico apto para aplicação de casos intrincados. Aliás, diga-se de passagem, nem mesmo o defensor mais otimista de uma regulamentação federal acredita que esta norma federal virá tão cedo, pelos mais variados motivos, como questões religiosas, morais, ideologias de gênero que hoje pautam o Congresso. O que não podemos é ignorar a realidade e os anseios imediatos da sociedade, ignorando o regime jurídico posto e princípios imediatamente aplicáveis ao caso.
[1] TJ/SP, AC nº 1055550-93.2019.8.26.0002, 4ª Câmara de Direito Privado, rel. Marcia Dalla Déa Barone, julgado em 21.01.2022
[2] https://www.migalhas.com.br/quentes/346777/stj-proibe-implantacao-de-embrioes-apos-morte-de-um-dos-conjuges
Diogo Leonardo Machado de Melo é pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis pela Universidade de Lisboa. Doutor em direito civil pela PUC-SP. Professor de direito civil do Mackenzie. Diretor administrativo do Iasp.
Fonte: Conjur