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Arpen-Brasil – “A retificação simplificada por via administrativa é um marco na conquista de direitos das pessoas trans”

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Em entrevista a Arpen-Brasil, Rachel Rocha, vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP, relembra os avanços das pautas LGBTI+, mas alerta sobre PLs que visam restringir ainda mais os direitos desta população

Desde 2018, os Cartórios de Registro Civil estão autorizados a realizar a mudança de nome e gênero diretamente nos registros de nascimento e casamento de pessoas transgêneros e transexuais. Nos últimos 5 anos, foram mais de 10 mil atos realizados, sem a necessidade de procedimento judicial e nem comprovação de cirurgia de redesignação judicial, também conhecida como transgenitalização.

Essa significativa mudança foi viabilizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio do Provimento 73, resultando em uma conquista que reduz consideravelmente obstáculos burocráticos e sociais. Rachel Rocha, vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo (OAB/SP), compartilha sua análise dessa conquista em uma entrevista à Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil).

Leia a entrevista completa:

 

Arpen-Brasil – Desde 2018, por meio do Provimento 73, os Cartórios de Registro Civil podem realizar mudanças de nome e sexo de pessoas trans sem a necessidade de procedimento judicial e nem comprovação de cirurgia de redesignação judicial, também conhecida como transgenitalização. Como o comitê de diversidade sexual da OAB/SP avalia essa conquista em termos de avanço para os direitos das pessoas trans?

Rachel Rocha – A Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB SP vê essa conquista como um grande avanço na vida das pessoas trans. As dificuldades de retificação de nome e gênero eram desafiadoras, considerando que cada processo ficava a juízo do julgador, pois, ainda que a jurisprudência desses passos importantes, nós tínhamos notícias de muitas decisões contrárias, o que impactava significativamente a vida dessas pessoas.

 

Arpen-Brasil – Antes dessa mudança na legislação, quais eram os principais desafios enfrentados por essa parcela da população no processo de alteração de nome e gênero nos documentos? Como o comitê analisou esse processo na época?

Rachel Rocha – Por ocasião da minha dissertação de Mestrado, fiz um levantamento em 45 acórdãos oriundos do Tribunal de Justiça de São Paulo, no período de 2000 a 2015, e me deparei com argumentos carregados de concepções hegemônicas para alicerçar as decisões dos pedidos de retificação de nome e gênero. Elegi na pesquisa dois eixos para os discursos jurídicos que pautavam as decisões.

No eixo com apelo biológico, um dos principais argumentos se voltava para a “exigência de cirurgia”; outros de que as pessoas trans não apresentavam “capacidade reprodutora”, logo não poderiam constituir famílias. Alguns exigiam a “obrigatoriedade de laudo médico e psicológico”, e de que esses laudos atestassem a condição de “portador da patologia descrita no CID-10, F64.0/transexualismo”.

No Eixo Jurídico, identifiquei discursos de que o nome era imutável, de que a retificação pretendida não correspondia à “Realidade jurídica e naturalística” ou à “Verdade registral”. A leitura que eu fiz foi a de que o judiciário era um campo produtor do discurso de verdades, e como estes, estrategicamente, materializam os sujeitos a partir de uma lógica inteligível ancorada no sexo biológico, pois era preciso adequar o corpo ao que a heteronormatividade compreende como corpos lidos, corpos biologicamente aceitos, corpos educados no padrão binário de gênero e sexo. Algumas decisões afirmavam que retificar nome e gênero sem a cirurgia de afirmação de gênero era um mero capricho, uma farsa, uma imitação da realidade, discursos que dei título à dissertação, pois eram impactantes.

Faço essa contextualização para mostrar que os desafios eram inúmeros. Dos 45 acórdãos, 11, que eram do autor/autora, foram recepcionados pela Corte Paulista, e 2 apenas para retificar o prenome, e 8 haviam realizado a cirurgia. Com o passar dos anos as decisões passam a reconhecer, poucas, na verdade, retificações sem exigência da cirurgia de afirmação de gênero, destacando o princípio constitucional da dignidade humana, sugerindo que a retificação do prenome e do sexo/gênero é um direito fundamental.

 

Arpen-Brasil – Qual é a importância da mudança de nome e gênero nos documentos para a vida das pessoas trans em termos de reconhecimento e inclusão social?

Rachel Rocha – O documento de identidade é essencial para a cidadania e de grande relevância para as pessoas trans à medida que evita situações de discriminação e de constrangimento. É direito à dignidade de autorreconhecimento. Como eu já destacado, o acesso ao judiciário era um desafio ao direito de ser e existir, porque ter um documento que não correspondia à identidade de gênero autopercebida já colocava aquela pessoa em situação de desigualdades em relação às outras pessoas em uma entrevista de emprego, por exemplo. Não foram poucas as situações que acompanhei de pessoas trans preteridas no acesso ao emprego. Falta de empatia e mais que isso, muitas vezes acusadas de falsidade ideológica. Então, a decisão do Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI 4275, proposta pela Procuradora Geral da União, Debora Duprat, resgata imperativos de Direitos Humanos, conforme já decidido pela Opinião Consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a nossa Carta Cidadão de 1988. É o resgate da cidadania de mulheres transexuais, homens trans, travestis e mais recentemente de pessoas não bináries.

 

Arpen-Brasil – Desde a implementação da nova legislação, quais são os resultados e impactos positivos observados pelo comitê em relação à mudança de nome e gênero nos Cartórios de Registro Civil?

Rachel Rocha – Inicialmente, é importante registar que a conquista não veio por meio legal, apesar de algumas proposituras no Congresso Nacional à época, como o Projeto de lei nº 5002/2013, denominado Lei João Neri, não aprovado pelo Legislativo, ante o ambiente desfavorável à pauta com temáticas LGBTIA+, os impactos são positivos pois a decisão do Supremo Tribunal Federal devolve às pessoas transgênero a dignidade usurpada pela sociedade. A lei de 2022 simplificou retificação para todas as pessoas, mas seria muito importante uma lei a exemplo de nossa vizinha, Argentina, pois marca o histórico de lutas de pessoas trans.

Ser reconhecido pelo prenome quando acessar serviços públicos, frequentar um banco escolar, ser chamado ou chamada pelo nome escolhido em espaços públicos são gestos tão simples, mas que fazem muita diferença na vida dessas pessoas. A primeira mulher trans que atuei em um processo judicial, em meados dos anos 2000, chorava de felicidade quando lhe foi entregue a sua certidão de nascimento nova.

 

Arpen-Brasil – Como a OAB/SP tem se posicionado frente a projetos ou iniciativas legislativas que buscam restringir os direitos das pessoas trans, incluindo a questão da mudança de nome e gênero nos documentos?

Rachel Rocha – Temos nos deparados com inúmeras propostas legislativas no âmbito federal, estadual e municipal que pretendem restringir mais ainda direitos de pessoas LGBTIA+ de modo geral. Especificamente com relação às pessoas trans, o quadro é bem amplo. Além de se omitir àquelas propostas que propõe medidas de cidadania às pessoas trans, o Legislativo brasileiro, e isso vale para as 3 esferas de poder, quando legisla, o faz na contramão da Constituição Federal. Por exemplo, aprovação de projetos que proíbem o uso de banheiro tal como a pessoa se autorreconhece, o uso de linguagem neutra, a participação de pessoas trans em esportes de acordo com a identidade de gênero, entre outros. Nós temos um Grupo de Trabalho na Comissão que tem se debruçado sobre essas propostas legislativas. O grupo tem elaborado Notas Técnicas que são importantes para circular entre colegas das Comissões do Estado todo e são documentos importantes para possíveis arguições de inconstitucionalidade junto ao Judiciário. Algumas leis sobre esses assuntos já foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, como Lei da linguagem neutra, porque que é gritante a inconstitucionalidade da norma, mas alguns políticos insistem, pois fazem parte de suas estratégias políticas. Mas estamos atentos enquanto Comissão.

 

Arpen-Brasil – Por fim, qual a importância de processos de desjudicialização como esse?

Rachel Rocha – A retificação simplificada por via administrativa é um marco na conquista de direitos das pessoas trans. Homens trans, mulheres transexuais e travestis resistiram e insistiram por muitos anos com a judicialização de seu direito à identidade de gênero, e essa judicialização era um recado de que não se conformavam aos múltiplos discursos que as e os encarceravam em documentos que não correspondiam à autoidentidade. Nesta disputa política de resistência sintetizavam um recado de que a defesa da autoidentidade e autorreconhecimento não era um mero capricho, mas um ato de autonomia e liberdade de decidir sobre o corpo e às vivências que desafiam as normas de gênero. Assim, a desjudicialização atendeu esse apelo e esse recado que vinha sendo negado por anos e anos. É preciso, contudo, facilitar o acesso à retificação, como já ressaltamos, para não incorrermos no risco contrariar o maior legado da Constituição de 1988, de que ninguém deve ficar de fora da proteção da Carta Federal.

 

Fonte: Assessoria de Comunicação – Arpen-Brasil

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